terça-feira, 19 de agosto de 2008

Felino


Ando meio assim, calado. Já não posso mais ficar assim, parado. Sempre fui tão agitado, tão ágil e espevitado. O lixo me atrai, e o que ninguém mais quer eu faço virar arte e culinária. É por isso que adoro sardinhas em lata. Em lata de lixo. Eu trajo pele e black tie todo dia. Eu já nasci assim, reizinho. É minha sina. E elas me alisam, e eles me chutam, e eu me limito a dar patadas grátis. Minha vida é toda grátis, e eu sou vip em qualquer lugar. Já nasci com pum greencard estampado em minhas digitais. Ninguém me manda pra fora: eu mesmo me retiro, amo aventura e perigo. Sou amante da lua, dos becos e ébrios. Sou totalmente dionisíaco, abstrato, artista. Eu sou mesmo uma incógnita. E eriço pêlos e bigodes, garras e olhares. Minha vida é um blues, meu miado tem um quê de jazz. Eu sou mesmo um astro. Eu sei que sou fofo, soberbo por natureza. Enxergo no escuro, caço ratos como ninguém, e, ainda por cima, convenço qualquer um a me afagar as orelhas. Posso pular da altura de sete telhados e cair em pé. A curiosidade nunca me matou, pois sete vidas me abastecem. Todas, claro, para reinar. Longa vida aos felinos! Cães? (gargalhada) Meaw Deus, os cães são tão babões, tão bobões, tão... capachos! Eu, não. Eu já nasci rei. E eu fico meio assim, zombando deles. Mais patadas naquelas fuças e latidos, naqueles uivos e ganidos ambulantes, irritantes, ultrajantes. Argh! Solares e arranha-céus são minha maior aventura. São a plena consolidação de minha monarquia. Mas, pra falar a verdade, me fazem sentir ditador. Meawcance, se puder. Mas não se canse de tentar. Aliás, vocês, humanos, me cansam. Nunca entendem que felinos nasceram para ser servidos! Bicho de estimação? Deus me livre! Tentam nos banir, nos bater, nos atirar o pau (acho um absurdo ensinarem isso a crianças)... Mas somos nós que afugentamos os camundongos, que embelezamos os seus reinos. Na verdade, o reinado é nosso, pois nossa presença é uma honra. Só precisamos de uma casa grande, uma almofada fofa, um par de pernas para nos roçar, um colo para nos deitar. E, quem sabe, um pouco de amor, mesmo que não possamos retribuí-lo. Somos felinos, meu bem. Não espere muito de nós. Ou compre um cão.

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