sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Vácuo

Atenção: história puramente fictícia. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. Ou não.

A Marcinha era do tipo que não passava vontade. Nenhuma. Também não tinha muita noção do perigo. Nenhuma. Levava a pé de letra os mandamentos do carpe diem, do carpe noctem e, se tivesse mais alguma coisa pra carpir, ela ia também. Todos os excessos, todos os pecados, todas as liberdades - as libertinas, as negáveis, as desaconselháveis.

A gente se conhecia da faculdade. Até andava junto, às vezes. Tá, bem poucas vezes. Mas ela gostava de me procurar pra pedir conselhos. Ela falava que eu era "mais certa das idéias", "do bem", "ajuizada". E, no fim, eu ouvia as mesmas histórias de sempre com a mesma protagonista - só mudavam os coadjuvantes. Consequentemente, dava os mesmos conselhos, sem muito sucesso. Nenhum, pra falar a verdade. "Cria juízo, Marcinha!", "toma jeito!", "as coisas não são assim". Mas a Marcinha não tinha juízo, nem escrúpulos. Era toda excessos, e caras, e bocas, e escândalos cotidianos. Não tinha amigos - "companheiros de balada" era como qualificava os que, vez ou outra, lhe ofereciam uma carona ou lhe pagavam uma bebida.

Era vazia - isso a gente notava pelos olhos. Ela tinha uns olhos escuros, pretos mesmo, daqueles que a gente não enxerga nem a pupila. Usava um cabelo todo despontado, batidinho, ficava bom no rosto dela. Era magra, mas sabe aquele "magra" que não é "magra, magra"? Ela tinha borogodó, ah, se tinha. E sabia muito bem disso. Mas, ainda assim, era vazia de dar dó. Por isso, os excessos. Tentava se entupir de beijos e noites sem dormir, festas e bebidas, pra ver se tapava todo aquele ar desesperado que se esvaía dela num ritmo surdo e constante. Não obtendo sucesso, dobrava a carga de noitadas e diversão. "Tenho medo de perigo, não", costumava dizer. "Um dia a gente morre, mesmo. Então, se eu não achar o que eu procuro, quero morrer tentando".

Mas dava umas crises de choro loucas quando ela voltava das baladas e ia bater à porta de casa, lá pelas cinco da manhã. Geralmente, ela costumava já ficar por lá, e íamos à faculdade juntas, logo depois que eu lhe empurrava um café bem forte pra curar ressaca. Ela olhava o nada, eu só via uma alma jorrando pra fora de um corpo, aquela maquiagem preta borrada. Alguém infeliz.

Ela me falava que procurava um grande amor. Procurava o cara certo, caçava deseperadamente. Mas achava mesmo é que ninguém valia um real. Dava em cima de todos os caras, os comprometidos e os solteiros, e ninguém deixava de se render. E era isso o que a desesperançava da vida. "Eu quero conquistar alguém. Alguém que se dê o mínimo de valor e respeito, mas esses caras são todos iguais", dizia.

Até o dia em que ela encontrou o cara certo. Alguém que ela conhecia há muito, mas que ela nunca vira com outros olhos. Alguém sensível e sincero, que a via como ela era - aliás, como ela queria ser: melhor. Um velho conhecido, que aos poucos se tornou amigo, e que a fazia contar cada milésimo de segundo até o dia seguinte, só pra vê-lo de novo. Nem que fosse só pra um "oi", um café, um sorriso que fosse. Passado algum tempo, ela resolveu mostrar, do jeito dela, como ela o queria.

Mas toda ação tem uma reação, e por mais perdoados que sejam os erros, suas consequências ecoam por toda uma vida. Ele não a julgou por seu passado, nem por quem ela estava disposta a ser por causa dele. Ele simplesmente não podia retribuir àquele sentimento, não da forma como ela gostaria. O que ele sentia por ela era a mais pura amizade - sentimento tão desinteressado, tão mais simples que um amor. Era só um amigo, e, por mais que ela usasse todas as armas da carne, jamais o renderia a ponto de cravá-las em seu coração. E isso a machucou, e ela decidiu afastar-se dele e de tudo o que remetesse a quem ela agora odiava ter sido.

Nunca mais vi a Marcinha. Mas ela deve estar bem, digerindo a lição, cicatrizando o passado, lidando com um vazio que ainda há de ser preenchido. Mais cedo, ou mais tarde. Mas vai.

Um comentário:

Tailany Silva disse...

Puxa, a Marcinha precisa se encontrar mesmo. Eu já tive momentos "Marcinha" na minha vida, mas passou. Pelo menos eu acho. :)